terça-feira, 23 de outubro de 2007




AS CHUVAS DA MINHA INFÂNCIA

Por Luiz Carlos Amorim (escritor e editor – lc.amorim@ig.com.br)


Esta noite acordei com a chuva batendo na minha janela. Não fiquei contrariado de ter acordado com o barulho dos pingos contra o vidro, porque gosto de chuva. Sempre gostei. Gosto de dormir com o tamborilar dos pingos no telhado (morei a maior parte da minha vida em casas, graças a Deus!) ou na janela. Que eu me lembre, só fico chateado quando chove muito nas épocas da florescência do ipê, do jacatirão, do flamboian, da azaléia e do olho de boneca (um tipo de orquídea comum, em nossa região), pois as flores caem mais depressa porque ficam pesadas com o excesso de água e porque apodrecem. E quando a chuva me pega desprevenido no meio da rua, no inverno, pois é resfriado na certa..
Mas como dizia, choveu esta noite e os pingos na janela fizeram com que me reportasse a minha infância, já um tanto distante. O tamborilar que agora me traz uma sensação de paz e melancolia, naqueles tempos de garoto, idos tempos, fazia com que eu e meus irmãos grudássemos nossos narizes nos vidros das janelas e olhássemos para fora, com uma vontade enorme de sair e brincar, descalços, na água que corria ao lado da casa e junto da calçada. Não era delicioso chapinhar na água da chuva? (Sei que chapinhar não é uma palavra muito usada, mas meu sobrinho de três anos a ouviu e adora usá-la.)
Nossa mãe, no entanto, alerta, nos detinha. Mas em ela se descuidando um segundo, lá estávamos nós, fazendo festa debaixo da chuva, jogando água um no outro, estancando-a em pequenos lagos e soltando barquinhos de papel na corredeira, os cabelos escorridos e a roupa encharcada, com aquele ar de felicidade que só criança tem.
Aqueles dias se foram e eu não corro mais na chuva. Quando apanho chuva, fico aborrecido por que vou chegar molhado em algum lugar. Não consigo mais ser criança como antes. E gostaria de poder. Porque acho que ainda sou um pouquinho criança dentro deste corpo que vai envelhecendo e ficando cansado.
Amanhã, quem sabe, talvez eu saia descalço e de peito nu, a cantar pela chuva. Se você encontrar um maluco molhado cantando e dançando na chuva, não se assuste. Pode ser que seja eu.



RASGOU O VERBO
RASGOU O VESTIDO
RASGOU O VELHO
RASGOU O VELUDO
O VESTIDO DE VELUDO VELHO
RASGOU O VERBO AMAR

ISABEL MIR
OUTUBRO/2007

segunda-feira, 22 de outubro de 2007




Morrer para viver mais e melhor


Leonardo Boff - Teólogo



O sentido da vida depende do sentido que damos à morte. Se a morte é vista como simples negação da vida e como tragédia biológica, então vale o que São Paulo já dizia: "comamos e bebamos pois amanhã morreremos".

Mas há culturas que lhe deram um sentido mais alto. Ela é oportunidade de construir o próprio destino e de plasmar o mundo à nossa volta consoante um projeto civilizatório.

O cristianismo, por sua vez, propõe a sua representação da morte. Não contrária à vida, mas como uma invenção inteligente da vida para poder dar um mergulho radical na Fonte de toda vida. A morte não seria um fim-termo mas um fim-meta alcançada, um peregrinar rumo ao Grande Útero paternal e maternal que enfim nos acolherá definitavamente.

Dentro do cristianismo desenvolveu-se, com referência à morte, uma tradição de grande significação e de sentido de festa. Trata-se da tradição franciscana. Francisco de Assis conseguira uma reconciliação bem sucedida com todas as coisas, com as profundezas mais obscuras de nossa vida e com suas dimensões mais luminosas. Cantava a morte como irmã. Não como bruxa que nos vem arrebatar a vida mas como irmã que nos introduz no reino da plena liberdade. Morreu cantando salmos e cantigas de amor da Provence.

Os franciscanos todos guardam esta herança sagrada na forma como celebram a morte de algum confrade, membro da comunidade. A mim, com frade (que ainda sou em espírito) me tocou vivenciá-lo inúmeras vezes. É simplesmente comovedor - uma pequena antecipação do novo céu e da nova Terra - dentro deste já cansado planeta. Ao se aproximar a morte do confrade, toda a comunidade se reune ao redor de seu leito. Recitam-se salmos e orações, infundindo confiança ao moribundo para o Grande Encontro. No dia em que morre, à noite faz-se festa. É a chamada "recreação". Ai há confraternização, comida, bebida, comentários sobre a saga pessoal do confrade falecido e jogos de vários tipos.

No dia seguinte faz-se o enterro. E à noite, nova "recreação" festiva. O que se esconde atrás desse rito de passagem? Esconde-se a crença de que a morte é o vere dies natalis, o verdadeiro Natal da pessoa, o momento em que acaba de nascer definitivamente. Como não estamos ainda prontos, embora inteiros, cada dia vamos nascendo, progressivamente, até acabar de nascer. Isso dá-se na morte. Esta não é a campa da vida. É seu berço. Quem pode se entristecer com o nascimento da vida? É Natal e Páscoa, magnificação da vida mortal que a partir da morte se eterniza. Portanto, há bons motivos para festejar e celebrar.

O efeito desta compreensão é a desdramatização da morte e a jovialidade da vida. A vida não foi criada para terminar na morte, mas para se transformar através da morte. Esta representa aquele momento alquímico de passagem para uma outra ordem de realidade, onde a vida pode continuar sua trajetória de expressão das infinitas possibilidades que contem, até aquela de poder se fundir com a Suprema Realidade.

Então podemos dizer: não vivemos para morrer. Morremos para viver mais. Melhor ainda: para permitir a ressurreição da carne que é a revolução dentro da evolução.
ENCONTRO


Neida Wobeto


É verdade!
É vero!
É Veríssimo!!!
A menina conheceu
o menino do passado.
O menino apresentou-se à menina
como o "homem das letras".
A menina encantou-se.
As letras trabalharam,
na infância da menina,
formando sonhos e idéias.
A menina perpetuou
a imagem da fantasia
e buscou espelhar-se no menino.
A menina cresceu.
O menino morreu.
As letras mudaram de nome.
A menina não conheceu,
em vida,
seu ídolo.
No plano etéreo,
em sonhos,
menino e menina trocam idéias
e as almas se apresentam:
- Muito prazer! Urda.
- Encantado! Érico.
O semi-árido: o mais chuvoso do planeta
Leonardo Boff - Teologo


O romancista Graciliano Ramos, o pintor Di Cavalcanti e o cantor-sanfoneiro Luis Gonzaga nos acostumaram a associar o semi-árido nordestino à seca. Mas se trata de uma visão curta e parcial. Os últimos anos conheceram notável mudança de leitura. Estudos minuciosos e trabalhos consistentes suscitaram uma visão revolucionária. Fala-se menos de seca e mais de Semi-Árido com o qual se deve conviver criativamente. Nesta tarefa ganham relevância ONGs, comunidades eclesiais de base, a Articulação do Semi-Árido (ASA) que inclui 800 entidades ao redor do projeto "um milhão de cisternas" (já se construiram 200 mil) e o Movimento de Organização Comunitária (MOC) de Feira de Santana-BA que atua em 50 minicípios. O melhor apanhado desse processo prático-teórico nos é oferecido pelo exímio conhecedor da bacia do São Francisco, Roberto Malvezzi, com seu livro "Semi-Árido: uma visão holística"(Pensar o Brasil 2007). O eixo central é entender o Semi-Árido como bioma e a estratégia consiste na convivência não com a seca mas com o Semi-Árido.
Tal bioma, chamado caatinga, recobre uma área de 1.037.00 km quadrados com rica biodiversidade. Na época da seca quase tudo hiberna. Mas basta chover, de setembro a março, para, em alguns dias, tudo ressuscitar com um verdor deslumbrante. Não há falta de água. Como média caem 750 mm/ano. É o Semi-Árido mais chuvoso do planeta. Mas pelo fato de o solo ser cristalino (70%), impedindo a penetração da água, acrescentando-se ainda a evaporação por insolação, perdem-se anualmente cerca de 720 bilhões de litros de água. Recoletada, seria mais que suficiente para toda a região.
A estratégia da convivência com o Semi-Árido "visa a focar a vida nas condições socioambientais da região, em seus limites e potencialidades, pressupondo novas formas de aprender e lidar com esse ambiente para alcançar e transformar todos os setores da vida". Com efeito, os vários grupos que por lá atuam, utilizam o método Paulo Freire que consiste, fundamentalmente, em criar sujeitos ativos, autônomos e inventivos. Assim aprendem a aproveitar todos os recursos que a caatinga oferece, utilizando tecnologias sociais de fácil manejo com o propósito de garantir a segurança alimentar, nutricional e hídrica através da agricultura familiar e de pequenas cooperativas.
Entre muitos, três projetos são notáveis: o da construção de um milhão de cisternas de bica que recolhem água da chuva dos telhados, conduzindo-a diretamente para o reservatório de 16.000 litros hermeticamente fechado. O outro é "uma terra e duas águas"(o "1+2"): visa garantir a cada família uma área de terra suficiente para viver com decência, uma cisterna para abastecimento humano e outra para a produção. Por fim, o Atlas do Nordeste, proposta da Agência Nacional de Águas para beneficiar 34 milhões de nordestinos do meio urbano, custando a metade da transposição. Esse projeto se opõe à transposição, qualificada como "a última obra da indústria da seca e a primeira do hidronegócio".
Os referidos projetos, se implementados, custarão muito menos, atenderão a mais gente e não causarão impactos ambientais. Por fim, cito duas outras iniciativas do MOC: o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), oferecendo educação contextualizada às crianças e o Baú da Leitura. São baús cheios de livros que percorrem as comunidades entretendo as pessoas com leituras, interpretações e teatralizações, fazendo o povo pensar. De fato, o ser humano não nasceu para passar fome mas para irradiar, como diz um de nossos poetas-cantadores.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

SOL e MI


Cordas nos acordam no pescoço, osso que foste forte, mas, se não fosse a tosse estarias bem. Antes do tom ouvistes um som? Era alguém lá de cima tentando a rima para a menina dos sonhos dormir. Barulho no murro de ar, solta a letra que tem tanta treta para se decifra, homem diz: quero notas para Mi tocar. Olhar que caminha, bolhas de água caem do céu, todos ficam atolados na lama, todos sentem a melodia da chuva, depois um coro de choro, outra chuva. Guardem os guarda-chuvas, pois, somos Sol, este que escreve não lhe abre portas, mas passa por elas em saltos de anzol. Terra fresca onde encontro contos de fadas cantados, alados, sem dados digitais? Malucos descrevem e escrevem a falsa normalidade, basta o tempo, idade que aos poucos entra dentro da água do côco, olhar na fossa, fosco. A busca pela caneta, a neta usou , sou quem procura os seus desenhos, ela me fala de estrelas e suas gotas de luz. A luz ilumina a menina do olhos de fogo. Jogo de luzes entre céu e mar, peixes rezando para a criança deitar, seus sonhos fazem o mundo pensar e isto pode ser perigoso em um momento que vivemos.

O velho passa a mão em seus cabelos, elos de sentimentos nunca mentem o que o coração fala, e fala baixo para que a vibração tenha ação, oração, espada cravada entre sabedoria e informação, ele não pode adivinhar, ninguém pode. A menina pede chuva de palavras para lavar seu corpo que transpira a inocência. Ela cresce e não escuta mais os sons, a menina fica grande e seus lindos sonhos tornam- se pequenos, impossíveis de serem alcançados, jogo-lhe o anzol para ajudá-la, quero pescar os seus sonhos e lhe entregar em uma caixa colorida, flor de idéias, imagens da vida. Menina, nina e dorme, acorda novamente em cordas, notas de Sol que Mi tocam.

Rodrigo Rafael Giovanella, (Kico).
Indaial –SC.

OBS: Este é um texto em ebulição, que nasce da consciência intuitiva deste autor que não planeja, viceja, sim, as suas impressões mimetizadas da sua alma que também se encontra em ebulição. Tal qual um vulcão prestes a emanar o magma denso, o autor a cima tem tudo para provocar rachaduras desconcertantes das placas tectônicas de uma literatura prestes a surgir como continente. Por tanto, a literatura propicia novos lugares em novos surgires, ou seja, novos textos.


Paulo Alfredo da Veiga – Escritor.
Ode ao rebolado

Pedro Jassa

Odeio a bunda dura
nada é se não abjeto
um ridículo completo
que só leva à vergonha

Impossível desejar
algo assim tão anti-estético
que ecarna o patético
numa curva quadrática

A dureza de uma bunda
esboça um futuro tédio
num monólogo estéril
que virá no logo após

O conforto é do macio
e o que é duro incomoda
mesmo estando tão na moda
a dureza é depressiva

Flacidez não é vantagem
mas dureza é suplício
mais vale ter equilíbrio
num balanço sensual
Precipitação

Daniella Almeida

Alguns passam por você
e sem perceber
fazem um bem danado...

Um dia pensamos, será?
No outro a certeza.

Aquele sentimento
um breve futuro imaginado
de minutos precipitados
logo se transforma em passado.
Poesia em revista


Vilmar Carvalho

Onde procurar a poesia da cidade que te mata?
Carregas os ossos de todos os poetas?
Que fibra é tão aérea que te escapas imensamente triste?
Afinal, qual a poesia em revista que te sufocas entre as tetas?


O homem maduro vê pela primeira vez seu peito.
O coração corre como uma avestruz desajeitada
E o balanço da vida... É uma revista das coisas acontecidas
Quando atiravas grandes banhos de esperança...

Sobre os telhados, um pouco abaixo, no rosto das ruas maltratadas,
Um pouco ao lado, nas franjas de cana-de-açúcar que tudo te custas saber...
Onde esta a poesia neste pequeno rasgo de casas?
O tempo todo partido apodrece em que pedaço de nojo?

Por que a sensação de que as mãos de seus poetas mortos
Caíram do braço e encontraram cada um dos pedaços
Da poesia que somente foi?
Onde esta a poesia dos vivos?

Numa impostura: a poesia não é afeta às conjunturas?
E preciso que as mãos da vida encontrem as mãos dos mortos,
Por que a poesia é registro, depósito e sedimento?
O homem maduro vê pela primeira vez seu peito.

Nenhuma cidade do mundo estará pesada de metáforas.
Enquanto esquecida está a poesia, outros conspiram
Um primeiro versinho sobre os auspícios da esperança.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

A FILHA DELE

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O ano, já não sei. Foi no ano em que foi fundado o Jornal Brasil de Fato, e o lançamento do mesmo aconteceu no Auditório Araújo Viana, lá em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial, e o mesmo estava totalmente lotado, três ou quatro mil pessoas ocupando cada espacinho possível, e o palco iluminado lá na frente, com uma longa mesa repleta de celebridades que, cada uma por sua vez, levantou-se e, de pé, diante de um microfone suspenso, falou da importância daquele jornal estar nascendo e da importância de tantas coisas neste mundo que todos nós acreditávamos que poderia ser melhor. Íamos de emoção em emoção, aplaudindo cada celebridade daquelas, sem estarmos, de fato, preparados, para o que viria abalar com a maior força de todas os nossos corações – e já não lembro quem tudo ali levantou e falou, mas lá estavam Sebastião Salgado, e Eduardo Galeano, e a Madre Hebe de Bonafini, vinda diretamente da sua Plaza de Mayo com a carga dos seus filhos mortos pela ditadura argentina, e todos tinham sua história de lutas e de resistência, e todos da longa mesa falaram o que iriam falar ... até que, lá na mesa, restaram apenas duas pessoas, uma mulher e um homem.

Até hoje não sei quem era aquele homem, pois ele foi o último a falar, e quando o fez, a emoção apaixonada que tomara conta de todas aquelas milhares de pessoas um pouco antes fez com que nenhum de nós prestasse atenção a ele – e não há que se dizer que havia ali tantos milhares de mal-educados, por terem feito tal coisa com aquele homem que ficara para o final, mas já conto o que aconteceu, e penso que não haverá quem não nos absolverá.
A penúltima pessoa a falar, portanto, era uma mulher. Teria cerca de 40 anos, era clara, um pouco loira, muito bonita, com um jeito de doçura e amplidão que a gente costuma imaginar nas mães, um pouco cheinha dentro de um simples vestido florido que lhe dava um jeito de primavera, e como eu, penso que quase a totalidade daquele grande público não fazia idéia de quem ela poderia ser. No seu jeito bonito e seguro, suave e doce, ela caminhou até o microfone suspenso, e com grande simplicidade, falou para todos nós:
- A última vez em que eu vi o meu pai, eu tinha cinco anos...”
Enquanto ela tomava fôlego para continuar a sua fala, um silêncio de pedra caiu no grande auditório, e penso que, como eu, cada um de nós fazia uma rápida conferência das suas memórias, olhando incredulamente para aquela linda mulher e comparando a sua imagem com outras imagens conhecidas, fotos famosas em todo o mundo, de um homem tão lindo por fora quanto por dentro, imortalizado pelas lentes de Alberto Korda e de outros, e penso que, como aconteceu em mim, ao mesmo tempo aconteceu com todo o mundo, e houve aquele instante em que “caiu a ficha”, e antes que a mulher pudesse continuar a sua fala, o silêncio de pedra espocou nos mais vibrantes aplausos que já ouvi em minha vida, como fogos de artifício na beira do mar em noites de Ano Novo, e aquele imenso público foi tomado por tal intensidade de amor por aquela mulher que ficara ali sentada um tempão, incógnita e bonita no seu vestido simples e florido, que já nada mais se ouviu do que ela tentou falar.
Diante de nós, em carne e osso, estava Aleida Guevara, a filha do Che, e penso que muita gente fez o que eu fiz: obedecendo ao coração, sem pensar em mais nada, saí às cegas, descendo as altas arquibancadas em direção ao palco, disparando o flash da minha pobre máquina fotográfica até o fim, tentando fixar de alguma forma aquele momento para sempre.
Havia um fosso de segurança, separando o palco das enormes arquibancadas, e com centenas de outras pessoas, eu encalhei ali, e os guardas que eram encarregados de manter a ordem naquele lugar sorriam-nos com simpatia e nos entendiam, porque também eles estavam encantados e apaixonados, pois um dia houvera um homem que nos dava o direito de sermos todos irmãos, e havia tal fraternidade ali, por conta daquela mulher de vestido florido que nos trazia, muito próxima, a presença do Che, que em nenhum outro momento da minha vida eu me lembro de ter vivido coisa igual.
Foi por conta de Aleida Guevara que não ficamos sabendo quem era o último homem que falou, mas penso que não faz mal – ele deve ter entendido que há forças que são maiores que todas as outras.
Então, o evento acabou, e milhares de pessoas foram saindo dali, mas algumas centenas ficaram, e os guardas não podiam nos liberar para irmos até ela, mas, irmãos como agora éramos, entregávamos a eles nossas máquinas fotográficas para que a fotografassem mais de perto para nós – e então fez ela sinal para que nós nos aproximássemos, e os seguranças ajudaram a nos organizar em fila.
Aleida Guevara, linda, serena e doce, aconchegante como uma mãe dentro do seu vestido colorido, ficou ali naquele lugar até que o último de nós pudesse trocar uma palavra com ela, pegar seu autógrafo, pousar para uma foto ao seu lado. Ela tinha a compreensão das coisas incompreensíveis – ela nos entendia. Foi uma noite para nunca mais esquecer. Tenho a foto daquele dia pendurada na parede da sala da minha casa.
Vi-a, de novo, dois ou três anos depois, em Caracas, no Fórum Social Mundial, e o amor que ela suscitava era o mesmo. Hoje faz 40 anos que assassinaram o seu pai. Não podia deixar de contar esta história.

Blumenau, 09 de Outubro de 2007.


Urda Alice Klueger
Escritora e historiadora

terça-feira, 16 de outubro de 2007




MEU PÉ DE JACATIRÃO E AS BORBOLETAS DE QUINTANA

Por Luiz Carlos Amorim (escritor e editor - lc.amorim@ig.com.br)


É manhã de domingo e o dia está triste, cinzento. O sol não saiu. Abro a janela e vejo meu pé de jacatirão com suas flores vermelhas, brancas e dessas duas cores misturadas, muito vivo. Nos dias de sol vou aguá-lo, pois o calor faz as pétalas de suas flores murcharem. E me vejo fazendo a mesma coisa hoje, carinho desnecessário, pois o sol não veio. E as borboletas também não virão, penso.


Então me lembro de um poema de Quintana, o menino Quintana, nosso menino Quintana, sempre ele: “Pedro pintou, um dia, em alguma parte do mundo o retrato de uma borboleta. / As cores, as de seu desejo. / Pintou, ainda, sobre o papel, flores para a borboleta se esconder e galhos para descansar. / ... / Nesse dia, ele viu o vôo de uma borboleta / (vôo de borboleta pode transformar qualquer dia em domingo).”


Então me dou conta de que meu dia triste já se iluminou com as cores do jacatirão, me dou conta de que posso pegar as cores das pétalas da minha amiga árvore, mais todas as cores do sol que não veio e pintar borboletas esvoaçantes dentro dos meus olhos e dentro do meu coração.


E deixo minhas borboletas alçarem vôo para fora do meu olhar e pousarem em meu pé de jacatirão. Percebi, então, que aquele não era um dia qualquer: era uma manhã de domingo, iluminada e feliz, com as minhas flores de jacatirão e as borboletas de Quintana.Só ele, o “passarinho” Quintana, o nosso poeta menino, para me devolver minha manhã de domingo. Como sempre, ele tinha razão do alto dos seus cem anos de poesia neste mundo de Deus e no outro mundo de Deus, para onde ele foi fazer poesia para os anjos. Nada como um vôo de borboleta para transformar qualquer dia em domingo, mesmo que esse dia seja mesmo domingo e mesmo que essas borboletas sejam pintadas com as cores do sol e das flores de jacatirão, dentro dos olhos de um poeta triste, para alegrar o seu coração. *******************************************************


Visite o Portal PROSA, POESIA & CIA.do Grupo Literário A ILHA, emHttp://br.geocities.com/prosapoesiaeciaLá está a revista Suplemento Literário A ILHA, a revista eletrônica Literarte e dezenas deseções como Grandes Mestres da Poesia,Autores de SC, Literatura Infantil, antologiascomo Todos os Poetas, O Tema do Poema,Feira de Contos, Crônica da Semana, etc.Está no ar o nº 102 do Supl. Lit. A ILHA, versão on-line.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

( Mario Holetz)




Ciência e Espiritualidade



Leonardo Boff

Teólogo



É de Einstein a frase:"a ciência sem religião é manca, a religião sem a ciência é cega". Com isso queria dizer que a ciência levada até a sua exaustão termina no mistério que produz assombro e encantamento, experiência típica das religiões. A religião que não se abre a este mistério das ciências deixa de se enriquecer, tende a se fechar em seus dogmas e por isso fica cega. A ciência se propõe explicar o como existem as coisas. A religião se deixa extasiar pelo fato de que as coisas existem. O que é a matemática para o cientista é a oração para o religioso. O físico busca a matéria até a sua última divisão possível, os topquarks, chega aos campos energéticos e ao vácuo quântico. O religioso capta uma energia inefável, difusa em todas as coisas até em sua suprema pureza em Deus.


Ciência e religião se perguntam: O que se passou antes do Big Bang e do tempo? Muitos cientistas e religiosos convergem nesta compreensão: Havia o Mistério, a Realidade intemporal, no absoluto equilíbrio de seu movimento, a Totalidade de simetria perfeita e a Energia sem entropia.



Num " momento" de sua plenitude, Deus decide criar um espelho no qual pudesse ver a si mesmo. Cria aquele pontozinho, bilionesimamente menor que um átomo. Um fluxo incomensurável de energia é transferido para dentro dele. Aí estão todas as possibilidades. Potencialmente todos nós estávamos lá juntos. De repente, tudo se inflacionou e depois explodiu. Surgiu o universo em expansão. O Big Bang, mais que um ponto de partida, é um ponto de instabilidade que no afã de criar estabilidade, gera unidades e ordens cada vez mais complexas como a vida e a nossa consciência.


O Princípio de auto-organização do universo está agindo em cada parte e no todo. Neste universo tudo tem a ver com tudo, formando uma incomensurável rede de relações. Deus é a palavra que as religiões encontraram para esse Princípio, tirando-no do anonimato e inserindo-no na consciência. Para defini-lo não há palavras. Por isso, é melhor calar do que falar. Mas se tudo é relação, então não é contraditório pensar que Deus seja também uma relação infinita e uma suprema comunhão.


Ora, esta idéia é testemunhada pelas tradições religiosas. A experiência judaico-cristã narra continuamente as relações de Deus com a humnidade, um Deus pessoal que se mostra em três Viventes: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.


O ser humano sente esta Realidade em seu coração na forma de entusiasmo (filologicamente significa ter um deus dentro). Na experiência cristã, diz-se que Ele se acercou de nós, fez-se mendigo para estar perto de cada um. É o sentido espiritual da encarnação de Deus em nossa miséria.


A ânsia humana fundamental não reside apenas em saber de Deus por ouvir dizer, mas em querer experimentar Deus. Atualmente, seria a ecologia profunda, a que cria o melhor espaço para semelhante experiência de Deus. Mergulha-se então naquele Mistério que tudo penetra e tudo sustenta.


Mas para aceder a Deus, não há apenas um caminho e uma só porta. Essa é a ilusão ocidental, particularmente das igrejas cristãs, com sua pretensão de monopólio da revelação divina e dos meios de salvação. Para quem um dia experimentou o Mistério que chamamos Deus, tudo é caminho e cada ser se faz sacramento e porta para o encontro com Ele. A vida, apesar de suas muitas travessias e das difíceis combinações da dimensão dia-bólica com a simbólica, pode então se transformar numa festa e numa celebração. Ela será leve, porque carregada da mais alta significação.


HISTÓRIA DA NORUEGA - Resenha



FURRE, Berge. História da Noruega. Século XX: da Independência ao Estado de bem-estar social. Trad. Kristin Lie Garrubo. Blumenau: Edifurb, 2006. 512 p.: il. (Norden, 1) ISBN 85-7114-169-X

Tendo como cuidadoso revisor principalmente dos conceitos e fatos políticos daquele país, para que nada se perdesse na tradução do texto de Berge Furre, e também como prefacista, o renomado professor Jorge Gustavo Barbosa de Oliveira, sociólogo, escandinavista e professor de política internacional da Universidade Regional de Blumenau/Brasil, o primoroso Volume 1 da Coleção Norden, que vai nos trazer, basicamente, a Noruega do Século XX, vem recheado de detalhes e surpresas sobre como aquela sociedade agiu para vencer seus desafios e desembocar no novo milênio como uma das sociedades de maior bem-estar social do mundo atual.
Bergen Furre, o autor, além de historiador e político, é professor da Universidade de Oslo, e da sua produtiva carreira e impressionante biografia, ressaltamos o fato de pertencer ao Comitê Nobel, o que escolhe o detentor do Prêmio Nobel da Paz.
O texto do professor Berge Fure tem um “prólogo” histórico, que ocupa 25 páginas, que vai nos trazer uma Noruega vinda a partir dos lendários tempos dos vikings e em todo o livro vamos encontrar ilustrações, desde fotos representativas dos mais importantes momentos políticos do país, até de paisagens e de belíssimas obras de arte que desconhecíamos.
Para nós, que habitamos um país novo, de dimensões continentais e de tão grandes desníveis sociais e econômicos, tendo ainda uma imensa percentagem de analfabetos e analfabetos funcionais, observar como uma pequenina Noruega, assolada pelos gelos dos intensos invernos e por longos períodos sem direito a sol pôde ir caminhando decididamente em direção à resolução dos seus problemas internos e externos, é deveras fascinante. Diríamos que, ao longo de um século, o povo norueguês como que elaborou um “contrato social” amplo, que abrangeu toda a sociedade, partindo de acertos e erros em suas muitas movimentações políticas internas e externas. Pensamos que, para tornar mais claro o que pretendemos dizer, é necessário primeiramente situar a Noruega dentro da Geografia deste planeta.
Quase no extremo norte da Europa (além dela só vamos encontrar a Islândia - com sua grande Groelândia) e as congeladas planícies que levam ao Pólo Norte), com mais ou menos a metade do seu território já situado dentro do Círculo Polar Ártico, ela tem um formato comprido e estreito, e se limita, na sua parte sul, em grande parte com a Suécia, e tendo ao norte uma pequena área limítrofe em contato com a antiga União Soviética, e possuindo bem mais ao norte, em pleno Oceano Glacial Ártico, a propriedade do arquipélago de Svalbard, além de mais de 55.000 ilhas – o que lhe dá um imenso litoral voltado para o movimentado mar do Norte, onde transitam incontáveis navios pesqueiros e outros, além de submarinos atômicos. O piscoso Mar do Norte foi palco, durante o século XX, de amplas disputas pelo poder das áreas consideradas como de plataformas continentais de outros países, como a Inglaterra e a Dinamarca, por exemplo, tendo-se, em tal período, se chegado a acordos também em tal assunto, tanto quando à divisão das áreas de pesca quanto às rotas livres de passagem de navios e submarinos internacionais.
São inúmeros os fatos políticos e outros relatados nas 512 páginas desse livro, e há que pinçar um ou outro para ilustrar esta que pretende ser uma pequena amostra de tão vasta e ampla obra. Escolhemos lembrar um dos fatos que vai assolar esse país hoje tão próspero no decorrer da Primeira Guerra Mundial: com tamanho litoral, a Noruega possuía uma imensa frota de navios com a capacidade de grande tonelagem, considerando-se o pequeno tamanho do seu território - e foi o país mais atingido de todos proporcionalmente quanto à perda de frota – ao final da guerra, 143 navios seus tinham sido postos a pique, o que significava quase 50% (cinqüenta por cento) da sua tonelagem, a maior perda proporcional que qualquer país teve, na ocasião (pág. 91 a 93).
Outra atitude política curiosa desse pequeno e corajoso país: em abril de 1949, entra ele como membro da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), e, como tal, passa a sentir-se, diríamos, como um país atlanticista, e não mais europeu – suas lealdades passam a ser dirigidas aos outros componentes de tal organização, em detrimento, diversas vezes de outros países da Europa, como Turquia ou Grécia, devido aqueles países, mesmo sendo do mesmo continente, não participarem da mesma organização. (p. 262)
O que mais chama a atenção no livro, no entanto, é como se vai construindo o já falado “contrato social” que vai transformar a Noruega num Estado de Bem-Estar Social. Acertando e errando, o país vai fazendo suas tentativas, e é impressionante como o Estado, paulatinamente, “vai tomando para si a responsabilidade pela segurança social e financeira dos seus cidadãos”. [1]
Para nós, que vivemos num país onde a população beira os duzentos milhões de habitantes, às vezes dá-nos a sensação de que estamos a observar uma Liliput, durante a leitura de tal obra. Tendo a Noruega hoje uma população de 4,5 milhões de habitantes, achamos no livro afirmações assim: “o crescimento demográfico aumentou durante a guerra”, e, logo em seguida: “Mais de 70.000 crianças nasceram em 1946, um recorde imbatível.” (p. 203) Tais dados levam-nos a reflexões, fazem com que paremos para pensar mais sobre como num país com reduzida população é possível saber-se coisas que nunca sequer imaginamos no nosso país – que no ano tal, por exemplo, havia na Noruega um cômodo para cada 1,5 pessoa viver, e que no ano tal, já havia um cômodo para cada pessoa viver, precisas estatísticas que dão todo um encanto à obra, como o caso de um único sítio que existia em montanha tão inacessível que a ele “só se subia ou descia usando um cabo suspenso ou uma escada que se lançava paredão abaixo” mas que mesmo assim criou-se toda uma preocupação em como fornecer energia elétrica a ele, quando o país passa a usar tal energia maciçamente. (p. 248)
Então, numa terra onde já se havia criado toda uma preocupação para com cada cidadão que lá vivia, de repente ainda se descobre que ela como que está ancorada sobre um mar de petróleo! Os primeiros barris do precioso líquido são extraídos em 1971 (p. 316), e é tão grande a riqueza descoberta, que há como que se redimensionar tudo, e superar crises inesperadas, e repensar uma vida ainda melhor para os cidadãos de um país que há tantas décadas já vinha sempre tentando aprimorar o que seria uma vida ideal para cada morador, mesmo que tenha feito tal coisa com acertos e erros, como já falamos.
Vale a pena ler o livro com a história de um pequeno país que tentou e conseguiu direcionar seus maiores interesses para o bem estar da sua população, e que conseguiu seus objetivos. De fácil e agradável leitura, “História da Noruega” nos leva a outras reflexões: seria possível fazer num país como o nosso, tão diferente daquele em tão diferentes ângulos, chegar-se a um resultado semelhante, se resolvêssemos, também, apostar em como que um “contrato social” de bem estar para a nossa população? Esta reflexão primeira e básica nos leva a outras, e a outras... quiçá muitas pessoas venham a ler tal livro! Talvez, se muitos de nós fizermos as mesmas reflexões, acabemos chegando a conclusões parecidas e possamos começar a mudança de que tanto a nossa gente e o nosso país precisam!

Blumenau, 13 de setembro de 2007.


Urda Alice Klueger
Historiadora e escritora
[1] Semelhante pensamento permeia grande parte do livro.
(Elke Littig)


aonde está o amor?

que cor ele tem?

seria vermelho talvez...

não!

vermelho é cor quente


e o amor é frio.

Elke Littig

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Apresentação da orquestra de Camara de Indaial - 04


quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Apresentação da Orquestra de Camara de Indaial -03





Apresentação da Orquestra de Camara de Indaial - 02


Apresentação da Orquestra de Camara de Indaial na SRI, dia 02 de outubro, durante a visita oficial da Governadora do LIONS

segunda-feira, 1 de outubro de 2007




OS CAMPOS DE ÉRICO VERÍSSIMO III
- Rua de Meninos

(Para Loreci Hintz e Eurico Rapachi, da Livraria Ponto do Livro, em Cruz Alta/Brasil)

As ruas de Érico Veríssimo são ruas de meninos! Mesmo antes de aqueles campos serem os campos de Érico Veríssimo, milhares de anos antes, meninos vinham à luz por ali, em grande sintonia com toda a beleza daquela natureza, e pezinhos morenos de pequenos meninos pisavam na relva boa do verão ou na geada da relva dos invernos, mesmo naquele tempo em que ainda não havia ruas, e, quem sabe, sequer havia caminhos ou trilhas!
O tempo correu, e pés descalços e calçados de botas e patas de cavalos e de gado foram abrindo sempre mais caminhos no verdor daquela relva, e lá no começo do outro século, quando Érico Veríssimo nasceu, decerto que já as ruas estavam definidas no lugar onde estão hoje, lá naquela cidade de Cruz Alta que foi o berço daquele menino que, segundo soube lá, tinha como avô um homem que era tão amado que lhe fizeram uma estátua na praça[1], e um pai que ele viria a retratar nos seus livros com o nome de Capitão Rodrigo Cambará, e quem é íntimo do Capitão Rodrigo Cambará não irá estranhar as benfeitorias modernas que ele introduziu na casa antiga onde seu menino viria a nascer. E aquele menino veio à luz numa casa bonita, numa rua que ainda não tinha asfalto mas que já era aquela que agora está lá, e provavelmente foi aquela a primeira rua da qual ele guardou lembrança na vida.
Penso na minha própria vida: eu deveria ter algo como 39 ou 40 meses quando começo a me lembrar de tantas coisas, e como me lembro vividamente das coisas de então, inclusive da rua onde vivia! Penso: que idade teria aquele menino Érico Veríssimo quando, pela primeira vez, deu-se conta que vivia no cruzamento de duas ruas, pois então talvez já existisse o cruzamento? Quando, pela primeira vez, olhou por uma janela, ou pela porta, e deu-se conta de que havia uma rua lá fora, e guardou-a no seu coração para sempre? Pois eu, mesmo tendo saído há décadas da rua que foi a primeira que lembro, quando alguém me pergunta, ainda sempre digo: “Sou da rua Tal”. Será que foi assim com aquele menino que um dia vicejou ali naquela casa tão bonita, e como foi? Estaria ele no colo da mãe, do pai Capitão Rodrigo, quem sabe de um padrinho, ou do avô que era como um santo? Ou, quem sabe, num dia de chuva, ele espiou cuidadosamente o grande mistério da Natureza lá fora, e muito encolhidinho numa beirada de janela, o coração aos saltos, deu-se conta de que ali havia uma rua? Que eu saiba, ele não escreveu a respeito – talvez tenha contado para algum amigo, quando, um dia, em terras distantes ... Talvez tenha lembrado daquela rua quando escrevia textos, assim como eu faço... É provável que aquela seja uma rua importante dos seus romances... Ele partiu tão cedo, já não dá para perguntar, já não dá para saber.
O fato é que aquela foi a rua de Érico Veríssimo, e um dia, como há milhares de anos acontecia, ele andou por ali pisando de leve com pezinhos, que se não eram morenos, assim o ficaram por conta do tanto sol que ilumina aquele lugar, e andando por aquela rua ele carregou sua lousa e foi para a escola, e por ela, mais tarde, ia trabalhar na farmácia que era fronteiriça à casa da namorada Mafalda – um dia, também por aquela rua, ele partiu para ir conquistar o mundo e o meu coração. E andou em outras, por ali, e decerto, como os meninos lá do outro século, caçou de bodoque e funda, e roubou laranja em quintais alheios, pois sempre tem laranjas nos quintais dos seus romances, e não podemos esquecer que Cruz Alta é Santa Fé... Ah! Ruas de Érico Veríssimo, que são ruas de meninos! Cada menino é único, assim como Érico Veríssimo o foi, e neste momento sinto uma aguilhada de dor por pensar que os meninos de Bagdá já não são únicos, pois já não o são...
As ruas de Érico Veríssimo são ruas de meninos. E há ruas próximas, por ali, e praça próxima, onde decerto ele brincou, e onde tantos outros meninos decerto também brincaram. Depois que ele se tinha ido daquelas ruas que eram dele, depois que ele estava lá fora conquistando o mundo, um outro menino que seria como um pássaro emplumado de azul e branco também veio à luz ali numa rua daquelas, e se Érico Veríssimo tinha dentro da alma uma florada incomparável de livros que deixariam o mundo encantado, aquele outro menino tinha um coração todo cheio de estrelas! E, já que aquela terra era cheia de ruas de meninos, também o menino das estrelas no coração pisou por ali com seus pezinhos morenos, como há tantos milênios por ali pisavam outros pezinhos, mesmo quando aqueles campos ainda não eram os campos de Érico Veríssimo! Só que, como já fazia mais de meio século que Érico Veríssimo aprendera um dia a pisar naquelas ruas, elas tinham se tornado as ruas de Érico Veríssimo, e nunca mais isto vai poder mudar – e o menino das estrelas, que também era um menino único, pisou as ruas de Érico Veríssimo que são ruas de meninos, pois onde meninos podem pisar melhor que nas ruas que são de Érico Veríssimo?

Blumenau, 30 de Setembro de 2007.


Urda Alice Klueger - Escritora



Pérolas do preconceito

Rubens da Cunha


O humor é uma arte de resistência. Muitos defendem que o humor não pode ter limites. Pessoalmente, sou bastante libertário neste assunto, acho que o humor pode muito, mas não pode tudo.


Recebi alguns e-mails com o título de “Pérolas do Enem”. O Enem é o Exame Nacional do Ensino Médio, uma prova que o Ministério da Educação aplica para diagnosticar a educação brasileira. Algumas incorreções, sobretudo gramaticais, viram peças de humor, não apenas de internautas, mas de gente como Jô Soares, que já abriu o programa diversas vezes com as “pérolas” dos alunos.


Não consigo rir. Acredito que, nesse assunto, o humor atravessou a fronteira do bom senso. Para mim, o humor só é válido quando a “vítima” ri de si, ou, mesmo que não goste, sabe exatamente por que estão escrachando seu comportamento. Acho difícil que alguém que tenha escrito “O serumano no mesmo tempo que constrói também destrói, pois nos temos que nos unir para realizarmos parcerias” consiga rir de suas inadequações, tanto gramaticais quanto de coerência.


É neste ponto que o humor deixa de ser uma peça de resistência e passa a ser instrumento da opressão. Meia dúzia de pretensos donos da língua pegam frases descontextualizadas e humilham aqueles que não têm domínio sobre a norma culta. Humilhação pura e simples. Afinal, os estudantes que prestaram o exame não são celebridades fajutas, nem políticos fanfarrões nem novos-ricos ridículos. São pessoas que, de uma forma ou outra, estão se expressando como podem, e se escrevem “errado” (bem entre aspas, mesmo) é muito mais por culpa de um sistema educacional excludente e indiferente do que por falta de interesse ou coisa que o valha.


Rir da ignorância gramatical alheia é reforçar ainda mais o abismo social que separa as classes sociais deste País, é reforçar toda uma estrutura política, social, ideológica que permanece no poder. A cada gargalhada que a platéia do Jô Soares dá quando ele repete as frases do Enem; a cada e-mail transmitido com as “pérolas” e com os comentários infames dos “sabedores da língua” (bem entre aspas, mesmo), aumenta mais a exclusão e, principalmente, diminui a força do humor como arte, pois ele passa a servir para uma minoria se divertir, quando a maioria segue seu próprio rumo, virando-se num analfabetismo funcional, que tem lá o seu próprio humor.


Normalmente, quem usa o “não-saber” do outro para rir e sentir-se superior tem a certeza de que a sua inteligência nunca vai ser questionada. Pura balela. Na mesma proporção que alguém tece um comentário torpe sobre a ignorância alheia, pode receber de volta um comentário torpe sobre a própria ignorância. O humor é uma estrada perigosa. Num dia você atropela, no outro é atropelado. Rir daquilo que o outro não sabe é fácil. Quero ver é rir daquilo que você mesmo não sabe, rir da própria ignorância. E isso, os que organizam e repassam as “peroras do Enem”, parecem não conseguir.