sexta-feira, 30 de janeiro de 2009




ÁGUA TATUADA



Como o olhar consome a demora,
A mão devora o livro em construção.
Desaguando num aquário de luz.

Tudo quanto vejo é falso.

Água tatuada pelo olhar das aves no corpo da sombra.
Canta na curva do sal o que me esquece.
Jamais sossega a pele da tatuagem.
Nada cicatriza o mar

Nada mancha o espelho do teu olhar.

Onde a paixão ecoa e a água encosta a luz.
O desejo sobra na memória
Enquanto a demência se orvalha junto à mão.
Ou o rosto aquece a sombra.

A tatuagem nunca apaga a pele.
Soterrada sob um borrão de musgo.

Os barcos descem ao átrio da areia.
Só a água vela a penúria de um horizonte
Como cicatriz alastrada ao vento.
A pele dorme na água.
Respira enquanto o olhar dissolve a náusea,
como uma súplica riscada na pálpebra das pedras,
Nos destroços dos cristais mais se desce a pele da água.
como a tatuagem inaugura a insônia.

Só o vento sobrevive no fim das águias.
Quanto mais a pele se entrega ao corpo,
menos se desperta a parede cega.
Eu gostava de poder dormir junto ao ar.
Mas já não sei como atravessar o sono,
ou arrepender-me de estar vivo.
Nada do que asseguro fará sentido,
enquanto o sal da memória temperar a crueldade da paixão.
Só o gume da água segura este delírio.
Mesmo que uma janela cante na pele iluminada sob a tatuagem.
Nem sempre o mar consegue adiar o rosto.

O olhar movimenta paisagens adolescentes.
O vento é oblíquo.
A tarde amadurece numa ladainha de nódoas.
Tudo levita à passagem da tatuagem perplexa.

Ultimamente apóio-me muito nas paredes.
Às vezes ponho-me uma capa de sombras pelos ombros,
de onde assisto ao meu futuro.
E é a sorrir na água do teu olhar te estendo um discurso.
Já outros me disseram que não devemos descer à rua com rostos alugados.
Um filete de sangue aduba a tatuagem.
E um violão aquece-me a voz, como o um café expresso.
Embalado num delírio crepuscular,
adormeço as mãos para te expor às tempestades da pele.
Percorro-te com a língua os labirintos
Até onde a cabeça escuta as respirações do sangue.
Morre-se a boca na tez crepuscular, liquescência.
O sol é um tigre ferido às portas do sono.
Nunca outra ave me doeu no peito,
como o vôo adiado ou interrompido sob o sangue.
Eu trabalho para que o texto me amordace num beijo demorado.
Como a tatuagem esmaga a pele.
Sacudo o pó do coração com subtileza de uma pétala de gelo.
Assim como te evoco no saldo do desejo,
somos cruéis até onde se morde a voz.
Arde-me o corpo na cabeça onde não estou.
Devagar e tarde. Percorri o desejo até às portas do vento.
Entrego a tatuagem aos dias.
Que se pergunta como regressar à pele.
Porque a água foi percutida pela ansiedade.
Sitiada pelo egoísmo.
E ocupada depois, pelo remorso.
Já nenhuma respiração me entala a cabeça,
entretanto exilada noutros fogos.
Chove, e eu também não sei porque é que as sombras não têm cor.
A luz afia o gume do teu corpo.
Para que a tatuagem veja os bastidores do desejo.
Adormece nos mapas do lençol.
Para que o sangue sacie a erosão do medo.
Agora - que pouco ou quase nada me sobra de ti,
que o sol não saiba - aterroriza-me o esquecimento.
Como se dentro de mim não houvesse eu.
Por vezes ainda me apanho a soletrar o anonimato.
A escutar o vento nas veias.
Se não mentisse, diria que me sobra uma janela e a água

Tanto quanto me cola a voz à tua pele,
assim se encantam os cheiros.
Se fustiga o vento na penumbra úmida onde se recorta a neblina,
Tudo já foi dito e redito, para que o corpo não sature mais a vigilância.
Quando Setembro se faz ao mar,
a água trepa pela labareda plúmbea.
O barro aquece as mãos,
e o olhar esfola o sarro da memória.
Na poalha dos crimes acordados,
boceja um coração atônito.
Ainda fará sentido projetar-me
sobre as arqueologias da ternura?