segunda-feira, 1 de outubro de 2007




OS CAMPOS DE ÉRICO VERÍSSIMO III
- Rua de Meninos

(Para Loreci Hintz e Eurico Rapachi, da Livraria Ponto do Livro, em Cruz Alta/Brasil)

As ruas de Érico Veríssimo são ruas de meninos! Mesmo antes de aqueles campos serem os campos de Érico Veríssimo, milhares de anos antes, meninos vinham à luz por ali, em grande sintonia com toda a beleza daquela natureza, e pezinhos morenos de pequenos meninos pisavam na relva boa do verão ou na geada da relva dos invernos, mesmo naquele tempo em que ainda não havia ruas, e, quem sabe, sequer havia caminhos ou trilhas!
O tempo correu, e pés descalços e calçados de botas e patas de cavalos e de gado foram abrindo sempre mais caminhos no verdor daquela relva, e lá no começo do outro século, quando Érico Veríssimo nasceu, decerto que já as ruas estavam definidas no lugar onde estão hoje, lá naquela cidade de Cruz Alta que foi o berço daquele menino que, segundo soube lá, tinha como avô um homem que era tão amado que lhe fizeram uma estátua na praça[1], e um pai que ele viria a retratar nos seus livros com o nome de Capitão Rodrigo Cambará, e quem é íntimo do Capitão Rodrigo Cambará não irá estranhar as benfeitorias modernas que ele introduziu na casa antiga onde seu menino viria a nascer. E aquele menino veio à luz numa casa bonita, numa rua que ainda não tinha asfalto mas que já era aquela que agora está lá, e provavelmente foi aquela a primeira rua da qual ele guardou lembrança na vida.
Penso na minha própria vida: eu deveria ter algo como 39 ou 40 meses quando começo a me lembrar de tantas coisas, e como me lembro vividamente das coisas de então, inclusive da rua onde vivia! Penso: que idade teria aquele menino Érico Veríssimo quando, pela primeira vez, deu-se conta que vivia no cruzamento de duas ruas, pois então talvez já existisse o cruzamento? Quando, pela primeira vez, olhou por uma janela, ou pela porta, e deu-se conta de que havia uma rua lá fora, e guardou-a no seu coração para sempre? Pois eu, mesmo tendo saído há décadas da rua que foi a primeira que lembro, quando alguém me pergunta, ainda sempre digo: “Sou da rua Tal”. Será que foi assim com aquele menino que um dia vicejou ali naquela casa tão bonita, e como foi? Estaria ele no colo da mãe, do pai Capitão Rodrigo, quem sabe de um padrinho, ou do avô que era como um santo? Ou, quem sabe, num dia de chuva, ele espiou cuidadosamente o grande mistério da Natureza lá fora, e muito encolhidinho numa beirada de janela, o coração aos saltos, deu-se conta de que ali havia uma rua? Que eu saiba, ele não escreveu a respeito – talvez tenha contado para algum amigo, quando, um dia, em terras distantes ... Talvez tenha lembrado daquela rua quando escrevia textos, assim como eu faço... É provável que aquela seja uma rua importante dos seus romances... Ele partiu tão cedo, já não dá para perguntar, já não dá para saber.
O fato é que aquela foi a rua de Érico Veríssimo, e um dia, como há milhares de anos acontecia, ele andou por ali pisando de leve com pezinhos, que se não eram morenos, assim o ficaram por conta do tanto sol que ilumina aquele lugar, e andando por aquela rua ele carregou sua lousa e foi para a escola, e por ela, mais tarde, ia trabalhar na farmácia que era fronteiriça à casa da namorada Mafalda – um dia, também por aquela rua, ele partiu para ir conquistar o mundo e o meu coração. E andou em outras, por ali, e decerto, como os meninos lá do outro século, caçou de bodoque e funda, e roubou laranja em quintais alheios, pois sempre tem laranjas nos quintais dos seus romances, e não podemos esquecer que Cruz Alta é Santa Fé... Ah! Ruas de Érico Veríssimo, que são ruas de meninos! Cada menino é único, assim como Érico Veríssimo o foi, e neste momento sinto uma aguilhada de dor por pensar que os meninos de Bagdá já não são únicos, pois já não o são...
As ruas de Érico Veríssimo são ruas de meninos. E há ruas próximas, por ali, e praça próxima, onde decerto ele brincou, e onde tantos outros meninos decerto também brincaram. Depois que ele se tinha ido daquelas ruas que eram dele, depois que ele estava lá fora conquistando o mundo, um outro menino que seria como um pássaro emplumado de azul e branco também veio à luz ali numa rua daquelas, e se Érico Veríssimo tinha dentro da alma uma florada incomparável de livros que deixariam o mundo encantado, aquele outro menino tinha um coração todo cheio de estrelas! E, já que aquela terra era cheia de ruas de meninos, também o menino das estrelas no coração pisou por ali com seus pezinhos morenos, como há tantos milênios por ali pisavam outros pezinhos, mesmo quando aqueles campos ainda não eram os campos de Érico Veríssimo! Só que, como já fazia mais de meio século que Érico Veríssimo aprendera um dia a pisar naquelas ruas, elas tinham se tornado as ruas de Érico Veríssimo, e nunca mais isto vai poder mudar – e o menino das estrelas, que também era um menino único, pisou as ruas de Érico Veríssimo que são ruas de meninos, pois onde meninos podem pisar melhor que nas ruas que são de Érico Veríssimo?

Blumenau, 30 de Setembro de 2007.


Urda Alice Klueger - Escritora

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