quarta-feira, 23 de abril de 2008

ARTE RESISTENCIA

ARTE RESISTÊNCIA[

Isabel Mir Brandt

Resumo: Este texto ressalta a preocupação que, como arte-educadora, tem se tornado tema de pesquisa com relação aos desafios e dilemas pessoais que enfrento também no fazer artístico do meu dia-a-dia como artista contemporânea, bem como na avaliação que fazemos do fazer arte na atualidade. Este texto é um relato de experiência a partir das impressões deixadas por um grupo diferenciado de freqüentadores do meu atelier de escultura, os estudantes da rede pública de ensino e seus arte-educadores.

Palavras chaves: arte-educação, arte contemporânea, arte resistência.
Abstract: This text emphasizes the worry I have as an art teacher. It has become a subject of research in relation to the individual challenges and doubts that I face in the artistic work and also part of my daily life as a contemporary artist, as well as the art evaluation of making it nowadays. This text is also a narrative of the experience I had through the impressions left by a distinct group of people that visited my sculpture workshop, the students of the public sector and their art teachers.
Key-words: art teachers, contemporary art, resistance art.

1. Introdução:

Como chegamos até a arte contemporânea:

O início do século 20 trouxe para a arte a abstração, ou seja, uma representação não-figurativa, na qual o olhar espectador não reconhece de imediato o objeto representado, levando a questionamentos e interpretações. Se o século 19 trouxe respostas práticas por intermédio das grandes invenções e do desenvolvimento da tecnologia, e a busca do homem coletivo integrado na sociedade, o século 20 estabeleceu outros parâmetros. A atenção se volta para dentro do ser humano, com a valorização não mais das grandes causas, mas do individual, do micro ser dividido entre o coletivo e o individual, entre o mundo público vigiado pelas câmeras e o privado dos sentimentos e ações inconfessáveis.

Da mesma forma, o cubismo de Picasso e a arte concreta, expressão cunhada pelo holandês Theo van Doesburg (1883-1931) em 1918, vão dar o caminho que a arte seguiria até a metade do século 20, ou seja, o de sua rotulação. Na necessidade de buscar cada vez mais a individualização, a arte se fragmenta em tendências. Ferreira Gullar, em 1959, publica o manifesto no qual ressalta as diferenças entre os concretistas e os neoconcretistas.

Na metade do século 20, outra questão: a pop art. O que Andy Warhol (1928-1987) propôs é que o artista antecede a própria obra. É a assinatura que leva o observador a reconhecer obra. Seria o nascimento da grife na arte. O valor não está mais na obra, mas na assinatura. Dos anos 60 para cá, não importa muito o que o artista cria, mas o seu currículo, sua assinatura. Todo tipo de lixo-arte pode ser apresentado nos grandes salões, desde que assinados por um currículo.

2. Sem Fundamentação Teórica:

A Arte na Universidade:

Quando os cursos universitários de arte se popularizam, nasce o movimento conceitual. O artista busca por intermédio do conhecimento dar à sua obra o rótulo da "arte inteligente". Levar objetos do cotidiano transmutados para os grandes salões, deliciar-se com a incompreensão dos observadores é colocar o artista na elite intelectual, dentro da academia, do grupo seleto em que a idéia antecede a obra. São os neofigurativos. Obras como um prato vazio colado numa tela em que o observador reconhece se tratar de um prato, mas que, na verdade da interpretação inteligente de seu criador, é a figuração da fome, deixando realmente o observador com fome de arte.

Da mesma forma em que as exposições comerciais ou salões se multiplicam, o observador, que é constantemente chamado de inculto, vai aos poucos estudando a tal arte conceitual, e se transforma no artista de fundo de quintal, que cola três gravatas numa tela, pinta por cima com uma cor fria e se intitula contemporâneo, cujo conhecimento sobre arte foi recém adquirido num curso. Fala sobre sua própria arte com o linguajar fluente dos críticos ao abordar temas como textura, linhas, profundidade, conceito, figuração etc.

Quando o neofigurativo é apropriado pelos artistas autenticados pelos diplomas da academia, a "arte inteligente" extrapola os ambientes expositivos acadêmicos para se lançar numa outra idéia, a da "instalação". A arte não pode ser mais repetida, comprada, colecionada, ela é efêmera. O observador tem de ir ao encontro dela, correr, ver, posicionar-se diante da obra e registrar a imagem na foto, antes que termine seu tempo. Ao artista criador cabe o registro na mídia, o impacto causado, o estranhamento documentado e adicionado ao currículo.
Algumas tendências da arte contemporânea serão eternizadas apenas pela foto arquivada na seção "Arte" dos arquivos documentais históricos e não mais nos museus, porque é mais barato arquivar uma foto do que manter conservada por anos uma obra de arte nas acervos das instituições.

3. A metodologia anti-científica:

A arte objeto de consumo rápido:

Dessa forma, bem-vindas sejam as "instalações" que podem incluir performance, objeto, vídeo, e principalmente o observador, estabelecendo uma interação entre eles. A inclusão do observador nesse processo é necessária para a dar autenticidade à obra com o intuito de levar as pessoas a tomar consciência do seu espaço, do seu corpo e de sua realidade.

Enfim, a arte do século 20 faz o seu observador passar de inculto a inconsciente de si mesmo e da arte a salvadora do homem. Entra em discussão um novo rótulo: a "arte-terapia", a salvadora de todos os males do novo homem que vão dos físicos até os morais. Proliferam as "escolinhas de arte", de inclusão social.

Essa nova modalidade de incluir e ser incluído cria a "performance", que consiste em transformar o artista em produtor da obra de arte teatral. Tudo é arte, tudo vira arte, tudo pode ser arte ou tudo pode ser incluído, do lixo às paisagens, da música aos gestos, desde que apresentado de forma teatral. E da mesma forma que a foto registra a instalação, o vídeo registra a performance. Nasce o mais recente rótulo da arte contemporânea, a videoarte.

Mas é nos bastidores dos grandes museus e galerias que administradores, financiadores, curadores e críticos compactuam felizes sobre as novas tendências da arte contemporânea. Primeiro porque fazer uma exposição de fotografias é de baixíssimo custo. As fotos chegam via internet e logo são impressas em equipamentos de alta tecnologia a custo mínimo. Os custos da videoarte, já produzida pelo artista, ficam dependendo da disponibilidade ou não do equipamento de projeção. À pintura sobre tela e à escultura, sejam elas deste ou aquele outro rótulo da arte contemporânea, restaram o mais importante item a ser observado nos editais e regulamentos dos espaços expositores: o transporte e seguro das obras, que deve ser única e totalmente responsabilidade do artista.

Assim, para os organizadores e curadores dos salões, uma escultura em aço que necessite de condições especiais de transporte, pelo seu volume e peso, é uma obra menor diante de algum objeto mínimo que chegue pelo correio a custo zero.

4. Descrição e análise do que?

Arte é um registro na mídia:

E quem são esses artistas que conseguem bancar a exposição de obras produzidas com altos custos e que não são vendáveis, apenas de vivência efêmera nos salões? Quem os patrocina? Se essa arte não é feita para o observador transformar-se em possuidor da obra? Se após o encerramento do salão a grande maioria dos trabalhos contemporâneos é abandonada por seus criadores, uma vez que o mais importante é o catálogo que será incluído no currículo? Nem ouso sugerir.

O resultado é que as instituições públicas promotoras de salões, sob a bandeira da arte-inclusão, estão conseguindo criar um novo contingente de excluídos, que pessoalmente rotulei como os "refugiados da arte contemporânea". Eles criaram seus próprios refúgios, sob as mais precárias condições de sobrevivência nos seus ateliês e oficinas.

5. A oralidade:

A arte resistência:

Existe uma arte subterrânea, longe do glamour e dos holofotes da imprensa do espetáculo dos salões, que é gestada entre o criador e o possuidor. Uma arte que silenciosamente se desloca sobre uma malha de entendimento e afeto, onde a grife e o currículo do artista pouco importam. Existe, sim, um mercado de arte nesse campo de refugiados, dos incultos, dos inconscientes, dos excluídos, que os holofotes não focalizam, e dessa escuridão vem a sua própria sobrevivência. Seria necessário criar um novo rótulo para essa arte? Seria arte-resistência? Existir e resistir enquanto for possível até que nos encontrem e destruam.

Em 2007, abri as portas de meu atelier de escultura para um projeto da Fundação Indaialense de Cultura, juntamente com a Secretaria de Educação do município de Indaial/SC, onde os estudantes das escolas públicas, acompanhados de seus professores de artes e literatura, podiam conhecer o ambiente onde o fazer do artista se conjuga com o ato criativo. Em apenas uma semana cerca de trezentos e cinqüenta estudantes buscaram conhecer a arte contemporânea sob a visão do artista que a produz.

As visitas foram organizadas em grupos vinte alunos de cada vez e permaneciam cerca de uma hora no atelier para possibilitar um diálogo entre os estudantes de arte e a artista. Durante as visitas percebemos que os questionamentos mais comuns que os estudantes faziam a maioria estavam ligados as questões comerciais da arte. É possível viver só de arte? Quem compra esse tipo de arte? Quanto custa?

Na necessidade de respostas, abri outra porta do meu atelier, a parte da escritora, poeta, ilustradora, que comercializa seus livros, da escultora de obras por encomenda, dos contatos com galerias de arte comerciais, que expõem minhas obras contemporâneas, mas comercializam as obras que o comprador de arte busca, ou seja, as que se adaptam aos espaços privados ou públicos que lhes foram destinados.

6. Considerações Finais:

Entre o ser ou parecer artista contemporânea:

Ser uma artista contemporânea significa viver num castelo dogmático, transformando meu discurso em aversão a qualquer debate que possa se impor e derrubar a frágil estrutura de areia que o sustenta.

Viver nesse castelo dogmático significa desabonar e desencorajar qualquer crítica que venha de fora de sua lógica. Nesse castelo a opinião de Ferreira Gullar, um gigante das artes brasileiras, seria taxada de reacionária e conservadora. E se a crítica vem de fora da grande muralha que cerca os dogmas da arte contemporânea, o resultado é mais desalentador, pois nos grandes salões de arte os críticos foram substituídos por bajuladores do artista em detrimento de sua arte.

Assumir o dogma do ser artista contemporânea significa pertencer a um clã fechado em suas próprias idéias e que age de forma coordenada com o objetivo de colocar em prática uma teoria pré-estabelecida de que a arte contemporânea tem que perpetuar e ritualizar Duchamp e a arte conceitual, para não correr os riscos de ser descoberta como uma fraude do fazer artístico. Pelo menos é o que vemos nos outros habitantes do castelo conhecidos como curadores, galeristas e artistas fazendo a todo momento. È nesse ponto que o parecer prevalece sobre o ser.

Negar os dogmas, questionando sua temporalidade e validade, é habitar alem das muralhas do grande castelo, é se misturar com os periféricos, os desconhecidos, os incultos, para quem o artista contemporâneo cria suas obras com o único objetivo de “criar estranhezas”, tão comentadas pela mídia especializada nesse tipo de arte. È comum nos depararmos com uma mídia enaltecendo que tal obra de tal artista provocou a interatividade da obra de arte contemporânea com o espectador, quando o convidou a entrar por túneis, salas, sentar em estranhos objetos pontiagudos, entre outras situações, mais ou menos constrangedoras, que segundo o dogma, é uma forma de dizer que espectador e artista estão em contato através daquela obra, que trata-se de um esforço intelectual para a interatividade e um reforço para a simultaneidade, que a obra acontece junto com o momento presente da visitação, que o espectador é a parte do mundo que se relaciona com a obra e vice-versa.

Segundo o dogma, o ser periférico e desconhecido tem que estabelecer um comportamento crítico sobre ele e o mundo ao seu redor através de uma seqüência de copos quebrados espalhados pelo piso de um conceituado Museu de Arte Contemporânea. Esse ser periférico e desconhecido precisa ser conscientizado de que é normal ter sentimentos de constrangimento ou embaraço em determinadas situações de contato com a arte contemporânea.

7. Conclusão:
A missão do arte-educador:

Cabe ao arte-educador perpetuar os dogmas da arte contemporânea, ou questiona-los, inovando na missão de entender, apreciar e fazer arte.

8. Fontes Consultadas:

Indicar uma bibliografia dentro das normas para envio de artigos científicos envolve duas dificuldades: a primeira que não usei citações de autores ultra-conhecidos nos cursos universitários de arte como G. Argan, H. Leichtt, W. Benjamin, B. Berenson, H. Eco, E. Gombrich, A. Hauser, M. McLuhan, P. Mondrian, E. Panofsky, C. Peirce. Segundo que os autores consultados na sua grande maioria apenas publicam suas impressões através dos blogs e sites temáticos na WEB, cuja autenticidade pode ser questionada.
Alem disso usei como fonte palavras, expressões e vivencias coletadas na memória do meu fazer arte junto com meus interlocutores.

Mesmo assim disponho de farta bibliografia sobre arte na minha biblioteca pessoal a qual consulto raramente, preferindo consultar publicações que funcionam como um manual, um resumo, do muito que já foi escrito sobre o mesmo tema com as mesmas conclusões como, por exemplo, o livro “A Historia da Arte do Século XX: idéias e movimentos, de autoria de Lucio Agra, publicado pela Editora Anhembi Morumbi, em 2004”.




[1] Este texto foi formatado de acordo com as normas para envio de Artigos Científicos, mas a redação transgride as mesmas normas.
[2] A autora é Mestre em Educação e Cultura pela UDESC, Universidade do estado de Santa Catarina, artista plástica, escritora. Presidente do Conselho Municipal de Cultura de Indaial/SC. Membro da Sociedade de Escritores de Blumenau/SC. Membro da Associação de Artistas Plásticos de Timbó/SC. Site: http://www.isabelmir.com.br/. E-mail: isabelmir@tpa.com.br. Endereço: Rua São Bento, 740, Timbó/SC. Telefone: (47) 3382-9951. Link currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3478862065354935
[3] O resumo histórico foi elaborado a partir e inúmeros resumos já publicados, digitalizados e colocados para consulta em inúmeras páginas de WEB dedicadas a arte.
[4] A teoria “arte-inteligente” carece de fundamentação teórica, pelo fato de que é uma autocrítica quando a autora ainda freqüentava os quadros acadêmicos como pesquisadora e professora universitária do departamento de Artes.
[5] As constatações são resultados das visitas feitas pela autora através de um olhar crítico, aos mais recentes Salões de Arte Contemporânea.
[6] O registro fotográfico das obras contemporâneas e das obras comerciais da autora pode ser conferido através do site: http://www.isabelmir.com.br/

[7] O grifo no termo é proposital e pretende criar estranheza no próprio texto.

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