sexta-feira, 27 de julho de 2007

texto da urda - Os campos de Érico Veríssimo

Fukuda




Os campos de Érico Veríssimo

(Para Emília do Nascimento Machado e Marília Klein Pinheiro, do Museu de Érico Veríssimo de Cruz Alta/RS)

Nem sei como começar. Talvez pelo dia, lá na década de 1960, quando descobri, entre 30.000 outros, na Biblioteca Pública da minha cidade, um livro que me levou de roldão no Tempo e no Espaço e que talvez tenha sido o primeiro grande livro que me moldou, que fez com que acabasse tendo a vida que tenho hoje... Lembro daquele dia, sim, nas Missões Jesuíticas, antes de Pedro Missioneiro nascer, e do padre cheio de culpa por um erro acontecido na juventude, lá na longínqua Espanha ... e aquele padre foi quem acabou criando o menino e foi quem deu a ele um punhal muito bonito que tinha ...
Talvez tenha sido Pedro Missioneiro o primeiro grande herói da minha primeira adolescência, e talvez tenha sido com ele que tenha aprendido a primeira palavra em espanhol, quando ele, fatalisticamente, explica a Ana Terra que não há por que fugir, pois ele já viu a sua morte num sonho, “sob um arból”...
E os seios de Ana Terra, que tremiam como se fossem feitos de coalhada, e o susto dela quando viu, pela primeira vez, espelhada na água da sanga a imagem daquele Pedro Missioneiro que geraria toda uma longa linhagem de heróis para a minha quase infância – e que acabariam sendo meus heróis, dentre outros, para toda a vida...
Não cabe, aqui, lembrar tudo, embora as lembranças me venham em turbilhões, como revoadas de pássaros a me envolverem, e nem sei como cabe dentro de mim tanta lembrança... Mas dá para sintetizar dizendo que tudo começou quando encontrei por acaso, dentre 30.000 outros, aquele livro maravilhoso que seria como que um primeiro leme na minha vida e na minha imaginação. Aquele livro era como puxar de lado uma cortina e deixar resplandecer para aquela quase criança as imagens radiosas do futuro que eu passaria a abraçar a partir daquela descoberta, e desde então ele foi e é absolutamente forte na minha vida, e penso agora, neste momento, se algum dia Érico Veríssimo pensou que aconteceria tanta coisa, como ter seus livros traduzidos para o chinês, ou que nas terras de Santa Catarina, que nem eram assim tão distantes, uma menina que ia de bicicleta até a Biblioteca Pública leria algumas dezenas de vezes aquele livro, e passaria a viver em prol da imaginação porque houvera ele, como grande Mestre, a lhe dar a certeza de que tal era possível!
Ah! Érico Veríssimo, meu Mestre querido, como sofri, uma década mais tarde, quando ouvi, no rádio de um carro, numa rodovia distante, que tinhas partido e que eu nunca te conheceria – se bem que então parecia-me impossível conhecer de verdade alguém tão fantástico assim! Choro amargamente agora, lembrando daquela noite, daquela notícia no rádio do carro, da grande perda que estava sofrendo, embora tivessem ficado os livros, e Pedro Missioneiro com o seu chiripá, e Ana Terra com os seios trêmulos como coalhada, e o palco da Imaginação todo iluminado e com as cortinas abertas.
Muito tempo se passou, muito tempo. Na próxima madrugada estará fazendo duas semanas que, enfim, como num sonho, eu fui lá. Viajei de ônibus, e amanhecia quando acordei, e havia ainda uma penumbra difusa sobre tudo, e transparentes nacos de neblina a fazer com que as coisas parecessem um pouco irreais, mas não eram. Eu tinha, afinal, chegado aos campos de Érico Veríssimo.
Aquela emoção que viera com o livro achado entre outros 30.000 não mudara, e ela veio e me sufocou de maravilha, porque, enfim, eu fora lá... E transida de emoção, como neste momento de novo me sinto, fui espiando tudo, e olhando, e entendendo que era ali, sim, que eram aqueles, sim, os campos de Érico Veríssimo! Faltava um bom pedaço para chegar à cidade de Cruz Alta, talvez uns 30 ou 40 quilômetros, e deu para ver muito bem o clareamento do dia, e as palavras desconhecidas para mim que ele usava, como sanga, por exemplo, a desfilarem pela beira da estrada como um rebanho de entes muito queridos que só agora a Geografia me mostrava, e em pleno fascínio eu espiava, pois tinha certeza que, de repente, Ana Terra passaria pelo campo com sua trouxa de roupa para lavar e entraria por dentre um amontoado de árvores, e eu poderia ver o susto dela ao deparar com um índio desacordado...
É tão pouco o espaço de uma crônica para contar como realmente foi! Ali naqueles campos, sem que eu nunca os tivesse visto, começaram a se formar, um dia, as estruturas da minha vida. Só alguém tão grande quanto Érico Veríssimo para ter transposto aqueles campos para o distante Vale onde eu me criei, e tê-lo feito tão bem que bastava olhá-los para os reconhecer. Foi muita emoção. Nem dá para contar mais hoje.

Blumenau, 26 de Junho de 2007.


Urda Alice Klueger
Escritora

Um comentário:

Maria de Lourdes Scottini Heiden disse...

Os campos de Veríssimo... ah, os campos de veríssimo...
Poesia chovendo na alma,
Poesia germinando no coração.
Ler o texto me fez mergulhar no passado. Como e por que comecei a escrever.
Não foi Veríssimo, foi um poema...
E o autor? Que pena! Desconheço.
Amo o veríssimo, seus campos, seus lírios...
Um abraço, Urda!
Maria de Lourdes