segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Essas coisas que andam no ar

Amilcar Neves, escritor


"Pontes", ele falou, "tanto quanto aviões, às vezes também caem".

Esta é a vantagem de ter uma feira de frutas, legumes, verduras, biscoitos, queijos e doces na esquina de casa, ali adiante, toda manhã de segunda-feira: poder conversar com o Velho da Feira, como ele é conhecido. Dizem que se chama mesmo é Venâncio da Fonseca, mas isto ninguém sabe nem está preocupado em averiguar. Ninguém sabe igualmente a que horas ele chega na feira, pois, por mais cedo que se vá até lá, ele já está a postos, escolhendo, discutindo preços e qualidade, reservando. Correm apostas no bairro sobre esse horário dele, e o bolão anda alto, pelo que asseguram os entusiastas da fezinha.

Este é um segredo inconfessável: toda segunda-feira acordo tão cedo quanto um motorista de ônibus e me toco para a feira sob o pretexto de abastecer a geladeira. Não imaginem, porém, que se trata de uma feira enorme, de dobrar esquina e ocupar transversais. Não, não é nada disso, são apenas duas barracas, na verdade duas kombis, uma do Ireno, que fornece os produtos manufaturados (de manus + facere, latim, fazer à mão, em português), a outra, do Davi, que se encarrega de suprir de verdes, raízes e correlatos as casas próximas.

Acordo cedo e o primeiro que vejo é o chapéu surrado de cor indefinida. Sob o feltro, sua figura impávida e tranqüila, em gestos compassados e voz pausada, apalpa gêneros à venda e comenta assuntos momentosos. O Velho da Feira (ou o respeitável Venâncio da Fonseca, descendente direto do Marechal Deodoro, dizem) certamente deve sua aparência vetusta muito mais aos invariáveis terno escuro, gravata marinho, camisa impecavelmente branca, meias pretas e sapatos de couro brilhante do que aos registros da sua carteira de identidade.

O inconfessado, agora: corro cedo à feira toda semana com o intuito único de ouvir do Velho suas histórias e comentários para poder passá-los em seguida para o papel (mentira, ele é que passaria para o papel, se fosse o caso, utilizando-se de uma elegante caneta-tinteiro de abastecer no tinteiro, jamais de um desses modelos de substituir cartuchos de tinta, modernidade demais para quem venera penas de pavão - eu me limito a cravar as palavras na tela do computador) e despachar o texto para o jornal, já estourando o prazo fatal das tardes de segunda a fim de que este espaço das quartas seja honrado como Deus manda.

"Aviões caem e se esborracham mesmo quando já estão no solo", ele pondera, "enquanto as pontes estão se esfarelando por aí, mesmo nos grandes países desenvolvidos." Escolhe com cuidado voluptuosas maçãs de São Joaquim. "Grandes edifícios desabam, atingidos ou não por aviões." Lúbricas cebolas de Ituporanga. "Não se pode confiar cegamente em geringonças que contrariam a natureza." Uma chimia de banana de Tijucas, rubra e doce como todos os lábios. "Essas coisas que andam no ar, por exemplo." Morangos frescos e lascivos de Taquaras, o distrito de Rancho Queimado. "O homem é da terra, foi feito para viver na terra, no solo, no chão. A ele não é dado elevar-se mais do que a altura da qual possa cair sem se machucar. Violando esta lei, seus riscos se multiplicam e, quando essas coisas caem, porque foram feitas para um dia cair, levam junto um bando inteiro de gente." Pára e me olha:

- Já lhe passou pela cabeça que todo o concreto do mundo pode estar chegando ao fim do seu prazo de validade, isso que os técnicos chamam de vida útil? Já pensou o que vai ruir por aí afora? Vai faltar noticiário para contar os mortos, confie em mim - acaricia com dedos expertos um maracujá de Araquari, fruto da langorosa flor-da-paixão, e me dá as costas.


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