quinta-feira, 2 de agosto de 2007

(Nestor Jr. - Scratch book 6)





O garoto que podia voar
AlbertoCohen


No palco de sua velhice ele não cultiva mais muitas saudades. Existe uma, no entanto, tão grande e forte que mais do que saudade é presença. Nos olhos surpresos, no riso maroto, na absurda esperança, bem no fundo do espelho ainda mora o garoto que podia voar.

Voava com os pássaros, com as pipas, com os aviões e, principalmente, com a imaginação. O espaço absoluto, sem porteiras, sem donos e sem pecados era o seu lugar, o grande desafio do mais pesado ser o mais leve. Tudo o que contrariava a gravidade o atraía e, afinal, tornou-se trapezista num circo mambembe.

Nos poucos segundos que separavam os trapézios, ele realizava o sonho de Ícaro e pairava na eternidade do desafio de não ter asas e mesmo assim voar. Era uma brisa, uma ave, um presságio, e quase queria não encontrar a outra barra e continuar voando para sempre. A tensão que precedia o início do salto valia pela sensação de não ter corpo, de fazer parte do vento.

Depois, as leis físicas que governam o destino dos homens e não permitem que eles sejam anjos, trouxeram-no para o lugar comum dos que rastejam no universo dos bens de consumo. Tentou ser prático, objetivo, mas apenas sonhou e envelheceu sonhando.

O menino fugiu para dentro do espelho, onde os dois se encontram, todos os dias, sem reclamações nem reprimendas, somente lembranças de um jovem trapezista e histórias de um velho que ainda voa, agora por muito mais tempo e num espaço cada vez maior, nas quimeras infinitas da poesia.