segunda-feira, 19 de novembro de 2007

A cabeleireira

Eu me sentei na cadeira em frente ao espelho. Ela trouxe uma capa preta e me vestiu. Mais com os olhos do que com a boca, perguntou:

– Como o senhor deseja?

– Normal, curto, mas prefiro que corte com tesoura. Foi o que respondi. Era novembro de 1983. Eu tinha 25 anos. Homem comum, qualquer um, como diz a canção. Ainda lembro daquele dia em que pegou meus cabelos e, delicada e automática, começou a cortá-los. Não dizia nada, nem sequer olhava no espelho, por mais que eu caçasse ali o seu olhar. Devia ter a minha idade. Terminou o corte, perguntou se estava bom, disse o preço e pediu para voltar outra vez.

Faz 25 anos que eu corto o cabelo no mesmo lugar. Vinte e cinco anos em que mês a mês, eu e a cabeleireira, nos isolamos numa ilha cercada de espelhos. Eu, carneiro, sou tosado pelas mãos de uma mulher que nem sei o nome completo. Nunca nos falamos mais do que o bom dia habitual. Depois que ela descobriu o quanto sou conservador em cortes de cabelo, parou até de me perguntar se estava bom.Por ela eu vi passar o tempo.

Primeiro uma aliança na mão direita. Depois na esquerda. Um período em que seus movimentos ficaram mais aéreos. Ainda havia firmeza de pele, de boca. E os olhos sempre fixos apenas na sua habilidade de cortar cabelo.

Depois a barriga cresceu. – Acho que é menina – , disse-me como num sonho, sem que eu perguntasse, sem que eu conseguisse aumentar a conversa. A filha nasceu. Às vezes, chorava dentro do carrinho. Ela saía de mim e ia cuidar da criança. Aquele frio que me fechava as pálpebras devia ser o ciúme.

Certo dia um olho roxo. Mês depois, a mão esquerda sem aliança. Quando eu ia perguntar como ela estava, empurrou minha cabeça pra baixo, até que meu queixo encostasse no peito. Estava, sutilmente, me fazendo calar.

Apareceu então com um cabelo loiro. Noutro tempo de preto, soube por terceiros que a mãe tinha morrido. Há uns dez anos a vi chorando novamente. - Vou ser avó... muito cedo, muito cedo... – e nada mais disse, nada mais chorou. Devia ter quarenta. Se não tinha mais a firmeza de antes, continuava delicada e automática no seu afazer.

Por respeitar demais essa distância, eu a vi novamente com uma aliança na mão esquerda, novamente me abandonar para cuidar da neta chorona, novamente a aliança sumir da mão esquerda. – Não dou sorte no amor – foi o que me disse mês passado.Vinte e cinco anos. Sei nada e sei tudo desta mulher. Olho-me e percebo que o tempo também passou por mim: menos cabelo, um enrugamento profundo no canto dos olhos, a sólida tristeza de não ter amado na concretude do corpo. De ter vivido em torno de um desejo etéreo. Por isso, hoje
decidi que vou conhecê-la de verdade. Ela está lá. Já me espera com a capa preta, a tesoura e o pente.– Achei que não vinha mais –, disse-me serenamente...

Rubens da Cunha

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