segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Cão de caça não nega a raça

Eu cresci num mundo povoado de fadas, de histórias de santos e de histórias árabes – as fadas vieram dos livros e, decerto, da minha avó lituana, e em histórias de fadas sempre acaba tendo também duendes, e príncipes, e reis. Já as histórias de santo vieram através da minha mãe, fervorosa católica. O que nunca entendi foi como me chegaram as histórias árabes – que só identifiquei como árabes mais tarde, estudando literatura de Santa Catarina – o fato que na minha infância se contavam muitas histórias árabes, no meu colono bairro do Garcia, um bairro de origens alemãs, numa cidade de origens alemãs, no sul do Brasil. O fato é que eram famosas, lá, histórias como as da Moura Torta e outras.
Mais tarde cresci e estudei muita História, e descobri que nem sempre os príncipes eram encantados, como se dizia nas histórias de fadas, e também descobri a história de muitos outros príncipes, que nada tinham a ver com trajes de veludo e de cetim, mas que usavam chompas[1] de pêlo de lhama ou fascinantes e elaborados cocares de riquíssimas penas de aves, um dos quais existe em minha casa, herança muito amada por mim. Os príncipes de verdade, os reis de verdade, aqueles das chompas e dos cocares não viviam histórias bobinhas de moça engasgada com pedaço de maçã e coisas assim, pois eles eram tão formidáveis, que as moças se inclinavam à sua passagem e iam livremente ao seu encontro – e eles não precisavam de beijinhos açucarados para acordar moças engasgadas com pedaços de maçã, pois suas moças eram as rainhas de coisas vitais para grandes civilizações, como o milho, a batata, o amendoim, o tomate, e tantas outras. Eram príncipes e reis que viviam em perfeita harmonia com a natureza, de povos guardiões de sabedorias milenares[2], de civilizações únicas, de grandes impérios[3] - e que tinham, como desvantagem, não conhecerem a pólvora e as armas de fogo – e quando o europeu invasor chegou a esta Abya Yala[4] que hoje costumamos chamar de América, possuidor que era das novas tecnologias da guerra, e adentrou a ela segurando na mão uma espada e na outra uma cruz (o arcabuz ia a tiracolo), e portando os mortíferos germes das doenças que tinham adquirido no meio da sujeira em que vivia, não foi muito difícil o saque, o morticínio, o sadismo, o horror – e o domínio do novo continente em pouco tempo, conquistado em nome de um deus que não devia fazer a menor idéia das barbaridades que se perpetravam em seu nome.
As crueldades do domínio foram tamanhas que uma poderosa voz acabou se fazendo ouvir a favor da nossa gente de Abya Yala, a de Frei Bartolomé de las Casas, religioso que dedicou a sua vida a proteger o que já não poderia mais ser protegido. Nem vou entrar no capítulos da barbaridades sexuais e outras que o invasor europeu perpetrou na nossa América – vou apenas citar um pedacinho do que viu Bartolomé de las Casas: “Eu vi uma vez quatro ou cinco dos principais senhores torrando-se e queimando-se sobre esss gradis e penso que havia ainda mais dois ou três gradis assim aparelhados; e pois que essas almas expirantes davam grandes gritos que impediam o capitão de dormir, este último ordenou que os estrangulassem; mas o sargento, que era pior que o carrasco que os queimava (eu sei seu nome e conheço seus parentes em Sevilha), não quis que fossem estrangulados e ele mesmo atuchou pelotas na boca a fim de que não gritassem, e atiçava o fogo em pessoa até que ficassem torrados inteiramente a seu bel prazer.(...)” [5] .
Aconselho a todos que leiam tal autor e possam fazer seus próprios juízos quando a mídia oficial fala as bobagens que fala.
Pois bem, ultrajada, vilependiada, humilhada, torturada, dizimada[6], a população da minha América, da minha Abya Yala, encolheu-se e foi obrigada a aceitar o jugo – mas no encolhimento ficou a resistência, e é só agora, mais de 400 anos depois, é que os povos antigos, as culturas antigas, estão conseguindo retomar seu lugar, e nossos “índios”[7] e seus mestiços voltam a liderar seus povos, e temos gente como Hugo Chavez, na Venezuela, e Rafael Correa, no Equador, e Evo Morales, na Bolívia, e sabe-se lá mais quantos estão vindo por aí, e a roda da História vira, e hoje são eles os que sentam nas cadeiras juntos ao muy ridículo rei de Espanha em Encontros Internacionais, e têm liberdade de dizer os seus pensamentos de igual para igual – mas o reizinho fascista não tem estrutura para a crítica, não tem paciência para essas pessoas de terceira categoria que foram meros escravos dos seus antepassados, gente que nem alma tinha antes – que estão a fazer ali, tendo idéias, pensando – e até melhor que ele! – e não suportou muito tempo a reunião da semana passada. No último sábado, deixando de lado tudo o que deveriam ter lhe ensinado, interrompe uma cimeira íbero-americana aos berros, dizendo a um dos líderes da nossa gente vilependiada (antes e também agora – porque o neo-colonialismo europeu é uma verdade das brabas!) que se cale, e quando diversos líderes das nossas terras caíram de pau em cima dele (por conta dos dois colonialismos), botou o rabo entre as pernas e abandonou a reunião.
Que é que tu pensavas, heim, ô reizinho à toa? Apesar da nova fase do colonialismo (leia-se: Santander, Telefônica, Banco Real, Banco Mercantil, e muitos etc.), tu não passas é de um reizinho à toa, que ainda não se conformou que hoje já não se podem queimar americanos bem torradinhos em fogo lento, nem mandar despedaçá-los por cães treinados, nem despedaçar com espadas as barrigas de mulheres grávidas para fatiar o bebê, entre outras coisas, como nos conta Bartolomé de las Casas.
Vai pra casa, ô bobão, vai beijar mocinhas engasgadas com pedaços de maçã, que aqui tu só nos incomoda e só nos faz mal! Nosso tempo de escravidão está passando, e quem sabe a gente não perde a diplomacia e te solta à frente de um bando de cachorros treinados, né?
Blumenau, 16 de Novembro de 2007.
Urda Alice Klueger – Escritora e historiadora.

[1] Chompas: blusas, creio que na língua quíchua ou aimará.
[2] No país Equador, neste momento, está funcionando a Universidade Amawtay Wasi (em portuguêsl: A Casa da Sabedoria), que resgata e reaviva os saberes antigos. Lá, você pode cursar Direito, Medicina, Arquitetura, História, etc., como em qualquer universidade, com uma diferença: há que aprender quíchua primeiro, e depois passar um período DESAPRENDENDO o pensamento eurocêntrico. Tem europeus em penca vindo aprender tais saberes lá.
[3] Você sabia que, no século XVI, quando o europeu invasor chegou a Tenoxtitlán (hoje, cidade do México), encontrou uma cidade com 200.000 habitantes, com tais confortos e benfeitorias que até água encanada havia em cada casa? Nessa altura, a maior cidade da Europa era Paris, com 80.000 habitantes e enterrada na sujeira de séculos de imundície.
[4] Abya Yala = numa língua antiga da América Central significa “Terra Mãe”.
[5] LAS CASAS, Frei Bartolomé de. O Paraíso destruído – A sangrenta história da conquista da América. Porto Alegre, 2001, L&PM Editores, p. 35
[6] Só nas minas de prata de Potosi morreram 8.000.000 de índios, de maus tratos e fome, conforme nos conta Eduardo Galeano.
[7] Nome chato, não? Há que se pensar que, quando chegou aqui, Colombo achou que tinha chegado ao outro lado da índia – daí este nome que não quer dizer nada para nós.

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